Minha lista de blogs

sexta-feira, 29 de agosto de 2014

FILOSOFIA - A VAIDADE DOS DONS DA FORTUNA - Boecio

Nicéas Romeo Zanchett 
                    Eu disse: 
                    - Tu própria sabes que a ambição das glórias mundanas pouco império tem tido sobre mim. Apesar disso, tenho desejado ocasiões de agir para que a virtude não perecesse por falta de exercício. 
                    Então disse ela: 
                    - Essa é aquela última enfermidade que pode seduzir as inteligências, que, conquanto nobres, não puderam ainda atingir uma perfeição refinada pela prática das virtudes - refiro-me ao amor da glória e da fama por grandes serviços prestados à comunidade. E contudo considera comigo como esta glória é uma coisa pobre e efêmera! Todo o globo terrestre, como aprendeste nas demonstrações de astronomia, comparado com a extensão do céu não é maior do que um ponto; isto é, medida pela vastidão da esfera celeste, a terra não ocupa absolutamente espaço algum. Ora, desta proporção tão insignificante do Universo, só uma quarta parte, como as provas de Ptolomeu nos ensinam, é habitada por criaturas vivas nossas conhecidas. Se desta quarta parte tirarmos mentalmente tudo o que é ocupado por mares e pântanos ou por desertos áridos, quase que não fica senão uma faixa estreita para a habitação do homem.  Então tu, que estás encerrado e prisioneiro nesta exígua fração dum ponto, ainda podes pensar em blasonar a tua fama, em espalhar o te renome? Por que, que tamanho ou magnificência tem a glória encerrada em limites tão estreitos e mesquinhos?
                    Além disso, este pequeno espaço de terra habitada é ocupado por muitas nações divergindo muito na língua, nos costumes, no modo de vida; a muitas destas, pela dificuldade das viagens, pela diversidade das línguas, pela falta de relações comerciais, não pode chegar nem já a fama de cidades quanto menos a de um homem! Vê tu, pois, como é estreita e limitada a glória que tanto te empenhas em espalhar e estender! De mais, os costumes e instituições das diferentes raças não concordam uns com os outros, e o que digo de louvor num país é castigado noutro. Por isso, se alguém ama o aplauso da fama não lhe servirá de muito tentar espalhar o seu nome entre muitos povos. De forma que cada um se deve contentar em que o alcance da sua glória seja limitado ao seu próprio povo. 
                     Por outro lado, quantas pessoas de grande fama nos seus tempos se perderam no esquecimento por falta de tradição e de crônica! E mesmo de que servem as crônicas escritas, que, com os seus autores, são alcançadas pelo esquecimento depois de um intervalo de tempo um pouco mais longo? Mas quando pensas na fama futura julgas estar arranjando a imortalidade para ti. Ora, se medires os espaços infinitos da eternidade, que campo tens para te regozijares na durabilidade do teu nome? Com efeito, se um só momento for comparado a dez mil anos, há uma certa duração relativa por mais pequena que seja, porque ambos os períodos são finitos. Mas este mesmo número de anos - ou ainda um número muitas vezes maior - não pode ser comparado à duração eterna; porque  os períodos finitos podem ser comparados uns com os outros, mas o finito e o infinito nunca. Por isso sucede que a fama, ainda que se estendesse por muitos anos, parecerá, se for comparada à eternidade, não só pequena, mas absolutamente nula. Tu sabes proceder corretamente, sabes apenas cortejar a aura popular e ganhar os sorrisos vãos da multidão - mais, abandonas o grande valor da consciência e virtude e pedes recompensa às fracas palavras dos outros. Deixa que te conte como alguém zombou da superficialidade desta espécie de arrogância: Certo homem assaltou outro que tomara o nome de filósofo como capa de vangloria e não para praticar a verdadeira virtude: 
                      - Agora é que vou saber que é filósofo, se suportares calma e pacientemente os meus insultos! 
                     O nosso homem finge ser paciente por um certo tempo, deixando-se insultar, e gritou finalmente: 
                      - Agora vez que sou filósofo? 
                      O outro respondeu-lhe sarcasticamente: 
                      - Tê-lo-ia pensado se não tivesses dito isso. 
                     Além disso, que tem com a glória os espíritos superiores; 
                      - é desses que falamos, dos que procuram glória pela virtude - que tem esses com a fama depois da dissolução  do corpo? Porque, se o homem morre totalmente, o que a razão nos proíbe acreditar, não há glória, visto que aquele a quem dizem pertencer a glória não existe. Mas a inteligência, cônscia da   sua retidão, desprendendo-se da prisão terrestre, não despreza todas as coisas terrestres regozijando-se da sua libertação dos laços materiais e entrando nas alegrias do céu? 
Trecho extraído da Consolação filosófica.
BREVE BIOGRAFIA DE BOÉCIO 
                Anício Mânlio Severino Boécio, homem de Estado e escritor romano, nasceu em Roma em 475 (aproximadamente); pertencia a uma rica família patrícia. Foi feito cônsul em 510 por Theodorico, rei dos Ostrogodos, e foi um senador e homem público distinto; mas as tentativas do senado para tornar real a supremacia nominal do imperador Bizantino, apelando para ele contra Theodorico, irritaram o rei que o fez prender em Pávia e executá-lo em 525.  Durante o período de prisão escreveu sua "Consolação Filosófica", parte em prosa, parte em verso, que gozou de grande popularidade na idade média. Ele tornou também conhecida a literatura grega aos seus contemporâneos por meio de traduções e comentários dos livros gregos de filosofia, matemáticas, retórica e gramática. 
Nicéas Romeo Zanchett  
.

Nenhum comentário:

Postar um comentário