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sexta-feira, 29 de agosto de 2014

FILOSOFIA - A VAIDADE DOS DONS DA FORTUNA - Boecio

Nicéas Romeo Zanchett 
                    Eu disse: 
                    - Tu própria sabes que a ambição das glórias mundanas pouco império tem tido sobre mim. Apesar disso, tenho desejado ocasiões de agir para que a virtude não perecesse por falta de exercício. 
                    Então disse ela: 
                    - Essa é aquela última enfermidade que pode seduzir as inteligências, que, conquanto nobres, não puderam ainda atingir uma perfeição refinada pela prática das virtudes - refiro-me ao amor da glória e da fama por grandes serviços prestados à comunidade. E contudo considera comigo como esta glória é uma coisa pobre e efêmera! Todo o globo terrestre, como aprendeste nas demonstrações de astronomia, comparado com a extensão do céu não é maior do que um ponto; isto é, medida pela vastidão da esfera celeste, a terra não ocupa absolutamente espaço algum. Ora, desta proporção tão insignificante do Universo, só uma quarta parte, como as provas de Ptolomeu nos ensinam, é habitada por criaturas vivas nossas conhecidas. Se desta quarta parte tirarmos mentalmente tudo o que é ocupado por mares e pântanos ou por desertos áridos, quase que não fica senão uma faixa estreita para a habitação do homem.  Então tu, que estás encerrado e prisioneiro nesta exígua fração dum ponto, ainda podes pensar em blasonar a tua fama, em espalhar o te renome? Por que, que tamanho ou magnificência tem a glória encerrada em limites tão estreitos e mesquinhos?
                    Além disso, este pequeno espaço de terra habitada é ocupado por muitas nações divergindo muito na língua, nos costumes, no modo de vida; a muitas destas, pela dificuldade das viagens, pela diversidade das línguas, pela falta de relações comerciais, não pode chegar nem já a fama de cidades quanto menos a de um homem! Vê tu, pois, como é estreita e limitada a glória que tanto te empenhas em espalhar e estender! De mais, os costumes e instituições das diferentes raças não concordam uns com os outros, e o que digo de louvor num país é castigado noutro. Por isso, se alguém ama o aplauso da fama não lhe servirá de muito tentar espalhar o seu nome entre muitos povos. De forma que cada um se deve contentar em que o alcance da sua glória seja limitado ao seu próprio povo. 
                     Por outro lado, quantas pessoas de grande fama nos seus tempos se perderam no esquecimento por falta de tradição e de crônica! E mesmo de que servem as crônicas escritas, que, com os seus autores, são alcançadas pelo esquecimento depois de um intervalo de tempo um pouco mais longo? Mas quando pensas na fama futura julgas estar arranjando a imortalidade para ti. Ora, se medires os espaços infinitos da eternidade, que campo tens para te regozijares na durabilidade do teu nome? Com efeito, se um só momento for comparado a dez mil anos, há uma certa duração relativa por mais pequena que seja, porque ambos os períodos são finitos. Mas este mesmo número de anos - ou ainda um número muitas vezes maior - não pode ser comparado à duração eterna; porque  os períodos finitos podem ser comparados uns com os outros, mas o finito e o infinito nunca. Por isso sucede que a fama, ainda que se estendesse por muitos anos, parecerá, se for comparada à eternidade, não só pequena, mas absolutamente nula. Tu sabes proceder corretamente, sabes apenas cortejar a aura popular e ganhar os sorrisos vãos da multidão - mais, abandonas o grande valor da consciência e virtude e pedes recompensa às fracas palavras dos outros. Deixa que te conte como alguém zombou da superficialidade desta espécie de arrogância: Certo homem assaltou outro que tomara o nome de filósofo como capa de vangloria e não para praticar a verdadeira virtude: 
                      - Agora é que vou saber que é filósofo, se suportares calma e pacientemente os meus insultos! 
                     O nosso homem finge ser paciente por um certo tempo, deixando-se insultar, e gritou finalmente: 
                      - Agora vez que sou filósofo? 
                      O outro respondeu-lhe sarcasticamente: 
                      - Tê-lo-ia pensado se não tivesses dito isso. 
                     Além disso, que tem com a glória os espíritos superiores; 
                      - é desses que falamos, dos que procuram glória pela virtude - que tem esses com a fama depois da dissolução  do corpo? Porque, se o homem morre totalmente, o que a razão nos proíbe acreditar, não há glória, visto que aquele a quem dizem pertencer a glória não existe. Mas a inteligência, cônscia da   sua retidão, desprendendo-se da prisão terrestre, não despreza todas as coisas terrestres regozijando-se da sua libertação dos laços materiais e entrando nas alegrias do céu? 
Trecho extraído da Consolação filosófica.
BREVE BIOGRAFIA DE BOÉCIO 
                Anício Mânlio Severino Boécio, homem de Estado e escritor romano, nasceu em Roma em 475 (aproximadamente); pertencia a uma rica família patrícia. Foi feito cônsul em 510 por Theodorico, rei dos Ostrogodos, e foi um senador e homem público distinto; mas as tentativas do senado para tornar real a supremacia nominal do imperador Bizantino, apelando para ele contra Theodorico, irritaram o rei que o fez prender em Pávia e executá-lo em 525.  Durante o período de prisão escreveu sua "Consolação Filosófica", parte em prosa, parte em verso, que gozou de grande popularidade na idade média. Ele tornou também conhecida a literatura grega aos seus contemporâneos por meio de traduções e comentários dos livros gregos de filosofia, matemáticas, retórica e gramática. 
Nicéas Romeo Zanchett  
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sábado, 23 de agosto de 2014

O QUE É UM VERDADEIRO EXPERT

Por Nicéas Romeo Zanchett 
Pintura SAMBISTAS de Romeo Zanchett 
Pastel sobre Papel Canson 
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                   Hoje se usa com muita prodigalidade o vocábulo expert. Não há um marchand-de-Tableux ou crítico de arte recém improvisado que não o seja. Mas o que é, afinal, um expert? 
                    Meu saudoso amigo Jorge Beltrão, com quem aprendi muita coisa sobre a verdadeira obra de arte, uma vez me disse: "Um homem que em toda a sua vida viu apenas um Di Cavalcanti não pode saber se é bom ou mau. Se viu dois, um terá sido melhor que o outro. Quando tiver visto
e estudado uma centena de obras do mesmo artista, sua opinião terá alguma probabilidade de ser realmente válida. E quando tiver visto mil, estará em vias de se tornar um expert, evidentemente, sobre aquele artista.  Para quem não teve o prazer de conhecer, Jorge Beltrão foi um dos mais conceituados marchands do Brasil. Teve galeria de arte e loja de móveis coloniais na rua São Clemente, 74 , em Botafogo - Rio de Janeiro. Trabalhei com ele de 1973 a 1979). 
                    Um expert é, pois, alguém que pelo estudo profundo e paciente, adquiriu conhecimento particular acerca de um determinado artista ou escola, e pode portanto, com autoridade, emitir opiniões sobre a autenticidade de uma determinada obra pertencente àquele artista, àquele período ou àquela escola.  A ação do expert restringe-se, forçosamente, ao campo do conhecimento de sua especialidade: Uma opinião de Bernard Berenson sobre uma pintura italiana do Renascimento terá logicamente muito maior força que outra opinião do mesmo expert acerca de, por exemplo, um quadro holandês da mesma época. 
                   Evidentemente, mesmo o melhor expert pode equivocar-se (e frequentemente o fazem), ou discordarem entre si. No primeiro caso é prova e logro de que foi vítima o célebre expert holandês  Abraham Bredius atestando a autenticidade de um Vermeer de Delf pintado por Vam Meegeren, autor da obra tão perfeita que o próprio falsário teve de provar em juízo, depois da Segunda Guerra Mundial, que sua pintura era falsa;  no caso, existem opiniões controvertidas de toda uma legião de famosos críticos e historiadores de arte acerca do quadro "Sagrada família", pertencente à Coleção Kress da National Gallery de Washington. 
Veja como divergem as opiniões dos experts:  
 a) Berenson - "autoria entre Catena e o jovem Ticiano" ( e mais tarde, em sua obra Italian Pictures of the Renaissance, algo inopinadamente: "Giorgione"); 
 b) L. Venturi - "É um Catena"; 
 c) Borenius - "Mestre da Natividade Allendale"; 
 d) Longhi  - " É um Gorgione"; 
 e) G.M. Richter - "É um Giorgione, mas a paisagem é de Sebastiano Del Piombo"; 
 f)  H. Tietza - É de um aluno desconhecido de Giovanni Bellini"; 
 g) Venturi - É de um intérprete de Giorgione, mas não do próprio Giorgione". 
  Todos, acima mencionados experts são unânimes em considerar a obra em apreço como pintura de alta qualidade, mas em termos já não de crítica de arte e sim de mercado de arte, porque existe uma enorme diferença de preço entre um autêntico Giorgione e o de um autêntico Catena.
                 Estima-se que atualmente metade das obras de arte negociadas no mundo são falsas. Numerosos Van Gogh, 70% dos Chagal e 90 % dos Salvador Dali. Também  Picasso, Rembrandt, Renoir, Klint, Mache são os preferidos dos falsários de nossos dias. 
                 O falsário pintor alemão Edgar Mrugalla  calcula que já copiou cerca de 3.500 quadros de artistas famosos ao longo da vida. Esta enorme produção de obras falsas cria grandes dificuldades para os experts. 
                  No caso brasileiro o problema das expertises não é tão complexo, nem tão controvertido, pois são artistas recentes e muitos ainda estão vivos. Mesmo para os mortos há ainda, entre os marchands, críticos e amadores de arte, uma lembrança muito nítida das obras mais importantes como, por exemplo, dos criadores do modernismo brasileiro. Apesar disso, nota-se, cada vez mais pronunciado, o aparecimento de obras de importantes artistas no mercado de falsários e possíveis falsos.
                  Os princípios que regem a expertise são os seguintes: 
                  1 - O expert não deve manifestar-se sobre a qualidade da obra e sim limitar-se ao problema de sua autenticidade; 
                  2 - Quem vende uma obra de arte não pode ser ao mesmo tempo o autor de sua expertise;  
                  3 - O expert pode ser responsabilizado juridicamente, sempre que ficar patente a má fé de qualquer expertise, mas não será culpado quando, de plena consciência, tiver expedido uma opinião que depois foi contestada; 
                  4 - O valor de uma expertise acha-se na razão direta do conceito de que goza quem a assina; 
                   5 - Nenhum expert, digno de nome, jamais fará considerações de ordem financeira ou se referirá aos preços do mercado. Limitar-se-á apenas à autenticidade da obra.
Nicéas Romeo Zanchett 
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sábado, 9 de agosto de 2014

A ARTE DA COMPOSIÇÃO LITERÁRIA - LONGINO


A ARTE DA COMPOSIÇÃO LITERÁRIA 
                 Mas visto que os sentimentos e a linguagem das composições literárias melhor se explicam pela luz que umas sobre as outras lançam, consideremos agora o que resta dizer com respeito à "Dicção". E neste ponto não se pode, creio, negar que uma escolha judiciosa de termos aptos e magníficos é sobremaneira própria para obter e manter a atenção de uma assembléia. 
                 Porque é disto que os grandes autores tiram com escrupuloso cuidado a grandeza, a beleza, a solenidade, o peso, a energia e a força das suas expressões. Isto veste uma composição literária do mais belo traje, fá-la brilhar como um quadro em toda a alegria da cor, e, numa palavra, anima os nossos pensamentos e dá-lhes uma vida como que vocal. Mas é desnecessário demorarmo-nos neste ponto diante  de pessoa de tanto gosto e experiência. As palavras belas são na verdade a luz especial com que devem brilhar os nossos pensamentos. Mas de modo algum é próprio que em toda a parte sejam túmidos e pareçam grandes. Porque vestir um assunto trivial de expressões grandiosas e grandiloquentes faz o mesmo efeito ridículo que faria a enorme mascara dum ator trágico no rosto pequeno de uma criança. 
                  .... (O princípio desta seção perdeu-se, lamentavelmente)... Neste verso de Anacreonte, os termos são banais, mas há nele uma simplicidade que agrada, porque é natural:  
Nem este Trácio me ralará!
                  E por esta razão me parece aquela celebre expressão de Teopompo, uma das mais significativas que tenho visto conquanto Cecílio nela encontre que censurar: "Felipe, diz ele, costumava engolir injúrias quando as exigências da sua política o tornavam conveniente."
                  Os termos banais são às vezes muito mais expressivos do que poderiam ser os mais escolhidos. Facilmente se compreendem porque tirados da nossa vida quotidiana; e o que nos é mais familiar, mais depressa obtém o nosso assentimento. Portanto, quando um indivíduo, para conseguir os seus fins ambiciosos, suporta injúrias e responde não só pacientemente, mas em aparência mesmo agradavelmente, dizer que ele  engole injúrias é uma das frases mais aptas e expressivas que se podem inventar. O seguinte trecho de Heródoto aproxima-se muito, a meu ver, do efeito do outro: " Cleomenes, sendo tomado de loucura, cortou com uma faca a sua carne em pedaços, até que,tendo retalhado o corpo completamente, morreu."  E, noutro ponto, Pites, tendo ficado no navio, lutou corajosamente, "até que o fizeram em pedaços." Estas expressões são quase banais, mas a sua significação está longe de o ser. 
                 Quanto ao número de metáforas que se deve usar, Cecílio é da opinião daqueles que acham que se não devem usar mais de duas ou tês na expressão do mesmo assunto. Mas nisto também seja Demosthenes o nosso guia; lendo-o, veremos que a ocasião de as empregar é quando as paixões estão tão desencadeadas que avançam como torrente, arrastando toda uma multidão de metáforas. 
                 "Essas almas prostituídas, esses traidores agachados, essas fúrias da República, que se combinaram para ferir e retalhar a sua pátria, que sorveram a sua liberdade em saúdes, primeiro a Felipe e depois a Alexandre, medindo a sua felicidade pela sua gula e pela sua luxúria. Quanto àqueles grandes princípios de honra e àquela máxima de nuca suportar um senhos, que eram para os nossos valorosos maiores a alta ambição da vida e a norma da felicidade - a esses subverteram eles completamente." 
                  Aqui por meio desta abundância de tropos, desencadeia o orador sobre os traidores o fervor da sua indignação. É porém preceito de Aristóteles e de Theofrasto que que as metáforas arrojadas devem ser de ligeiras atenuantes, tais como, se assim posso dizer, e por assim dizer, e se me posso exprimir com esta audácia.  Porque esta desculpa preliminar atenua muito, dizem eles, a violência dos tropos. 
                  Esta regra será boa para uso geral, e por isso a admito; mas continuo a sustentar o que antes disse com respeito a figuras de retórica; que metáforas arrojadas, e essas também em abundância, não são deslocadas numa composição literária nobre, onde constantemente as mitiga e atenua a veemência patética e sublimidade generosa dispersas pela composição  total. Porque, como é de natureza do patético e do sublime, o correr rapidamente, arrastando tudo, exigem que as figuras que os expressãm sejam enérgicas e incisivas, e não dão a um ouvinte o tempo preciso para poder ser crítico da sua multiplicidade, porque diretamente lhe ferem a imaginação e lhe comunicam a veemência e a energia. 
                  Admita-se de momento a possibilidade dum escritor impecável e acabado, e então valerá a pena examinar na generalidade este ponto importante; se, em poesia ou prosa, o que é verdadeiramente grande de mistura com alguns defeitos valerá mais do que o que, nada tenho de extraordinário nos seus melhores trechos, é contudo inteiramente correto e sem defeito? E, mais, se a excelência do bem-escrever consiste o número das suas belezas ou na grandeza dos seus rasgos? 
                   De bom grado admito que os escritores de um gênio alto e dominador nem sempre são puros e corretos, visto que o que é de princípio ao fim acurado e polido deve tender extremamente a ser chão. No sublime, como numa afluência demasiado rica, alguns pormenores menos importantes escaparão inevitavelmente à observação. Mas é quase impossível a um engenho chão o cair em erro, visto que nunca a isso se arrisca, voando alto ou tentando ser sublime, visto que continua sempre no mesmo caminho uniforme e seguro, ao passo que a própria grandeza e arrojo do sublime expõe a quedas súbitas. Nem ignoro ainda outra, a qual sem dúvida objetarão, e é que ao criticar as obras dum autor, sempre notamos as suas imperfeições, de modo que a memória dos seus defeitos perdura no espírito, ao passo que a das suas qualidades depressa se nos esvai.  Quanto a mim, tenho tomado nota de não poucas imperfeições de Homero e de outros dos maiores autores, às quais não posso ser cego; tenho-as, porém, não por defeitos voluntários, mas antes por lapsos causais acontecidos por inadvertência; tais com os que, quando o espírito está entregue a assuntos de natureza elevada, insensivelmente penetram nas composições literárias. E por isto dou como minha opinião final que os rasgos grandes e nobres, conquanto não ostentem uma perfeição igual, devem ainda assim levar a palma, pelo único mérito da sua grandeza intrínseca. 
                   Apolônio, autor da Argonáutica, era um escritor impecável; e ninguém escreveu melhores pastorais do que Theócrito, excetuando algumas composições  em que ele se desviou do seu gênero. Mas apesar disso tudo, preferireis se Apolônio ou Theócrito a ser Homero? O poeta Eratósthenes, cuja Erigona é uma composição completa e mimosa e sem um único defeito, deverá ser considerado superior como poeta a Archiloco, que tem muitas e arrojadas irregularidades, um espírito divino arremessando-se na sua nobre carreira, um espírito que se não dobra às regras nem facilmente se deixa inibir? Na lírica, querereis antes ser Bacchylides do que  Píndaro ou Io de Chios do que o grande Sófocles?  Bacchylides e Io escreveram suave, mimosa e corretamente, nada deixaram que não fosse polido; mas em Píndaro e Sófocles, que levam fogo consigo pela rapidez do seu movimento, esse próprio fogo muitas vezes se lhes apaga, e então caem misevavelmente. Mas tenho a certeza de que não há ninguém de gosto que hesite em preferir o simples Édipo de Sófocles a tudo quanto Io escreveu. 
                  Se as excelências dos autores tem de ser apreciadas pelo seu número, e não pela  sua qualidade ou grandeza,  então Hiperides tem de ser considerado muito superior a Demosthenes. Tem mais harmonia e melhor cadência, um maior número de belezas e estas de um grau quase excepcional.  Parece um campeão que, tendo-se feito senhor dos cinco exercícios, em cada um deles deve ceder a outrem a primazia, mas em todos juntos permanece único e sem rival. Porque Hiperides em tudo, exceto na estrutura das palavras, imitou as qualidades de Demosthenes, juntando-lhe a beleza grandiosa de Lísias. Quando o seu assunto exige simplicidade, o seu estilo é extremamente suave; nem dá expressão a tudo com a mesma ênfase veemente do que Demosthenes. Os seus conceitos são sempre justos e apropriados, temperados por uma doçura deliciosa e suave harmonia de palavras. Os seus ditos de espírito são  inconcebivelmente finos. Provoca o riso com uma arte magistral e é grande a sua destreza na ironia ou no escarno. O seu modo de motejar está longe de ser grosseiro, nem é nunca excessivo como o dos imitadores degenerados da concisão atica; é, pelo contrário, natural e próprio. Que arte não tem em fugir a um argumento! Com que graça ridiculariza, e com que destreza fere em meio de um sorriso! Numa palavra, há uma graciosidade inimitável em tudo o que diz. Nunca ninguém com mais arte comoveu; ninguém houve mais difuso na narrativa; ninguém mais hábil em abandonar e retomar um assunto com tanta facilidade e sutileza. Vê-se isto claramente nas suas pequenas fábulas poéticas de Latona; e, de mais a mais, compôs uma oração fúnebre cuja pompa e ornatos creio que nunca foram nem virão a ser ignorados. 
                    Demosthenes, pelo contrário, não foi bem sucedido na descrição das tendências e caracteres dos homens; a eloquência difusa era-lhe desconhecida; desajeitado na sua apresentação; falho de pompa e de esplendor na sua linguagem; e, numa palavra, deficiente na maioria das qualidades que caracterizam Hiperides. Onde o assunto o obriga a ser alegre ou jocoso, faz rir com efeito, mas é dele. E Quanto mais se esforça por gracejar, mais longe está de o fazer. Se alguma vez tivesse tendado um discurso a favor de uma Frine ou de um Atenógenes, essas tentativas só teriam feito dele um péssimo exemplo para Hiperides. 
                  E, apesar de tudo, a me ver, as numerosas belezas de Hiperides estão longe de ter qualquer grandeza intrínseca. Mostram a sobriedade serena do engenho do autor, mas não tem alma nem para animar nem para entusiasmar uma assembléia. Ninguém que o leia se sente tomado de qualquer emoção extraordinária. Ao passo que Demosthenes, juntando a uma constante grandeza de inspiração e magnificência de frase (as maiores qualidades de um orador) tais rasgos de paixão, tal cópia de palavras, tal rapidez no falar; e, o que constitui o seu gênio especial, tal energia e veemência com os maiores autores não ousaram aspirar a atingir; tendo, repito, em abundância todas estas qualidades divinas (seria pecado chamar-lhe humanas), - excede a todos que o precederam, em belezas que lhe são próprias; e para compensar as deficiências nas qualidades que não tem, vence todos os adversários pela força irresistível e relampaguear deslumbrante da sua eloquência. Porque é mais fácil ver com olhos firmes e não deslumbrados o clarão do relâmpago do que aqueles rasgos ardentes do patético que tão rapidamente se sucedem nas suas orações. 
                   O paralelo entre Platão e os seus adversários deve ser feito de um ponto de vista diferente. Porque Lísias não só lhe é inferior na excelência geral, mas também no número das suas belezas. E, o que é mais, não só fica aquém dele no número das suas belezas, mas excede-o de muito na quantidade dos seus defeitos.   
                  Que devemos nós supor, portanto, que tinham em vista aqueles escritores divinos que tanto se empenharam em levantar as suas composições ao mais alto ponto do sublime, e olharem com desprezo para a correção? Entre outras, aceite-se esta explicação. A natureza nunca tencionou que o homem fosse um animal rastejante e acanhado, mas trouxe-o para a vida e colocou-o no mundo como num teatro apinhado, não para ser um espectador ocioso, mas levado por sede ansiosa de vencer, para lutar ardentemente pela posse da glória. Para este fim lhe pôs ela na alma um amor invencível da grandeza, e um constante rivalizar com o que mais ele parece aproximar-se da divindade. É por isso que todo o universo  não basta para o alcance enorme e especulação penetrante do entendimento humano. Passa os limites do mundo material e gostosamente se lança pelo espaço infinito. Que cada um de vós examine de perto uma vida que em cada cena seja notável pela sua grandeza, beleza, excelência, e breve perceberá os nobres fins para que nascemos. Assim, o impulso natural faz com que admiremos, não o regato pequenino e transparente que nos mata a sede, mas o Nilo, Ister, o Rheno, ou, muito mais ainda, o Oceano. Nunca nos causa surpresa o pobre lume que arde claro e se apaga na nossa lareira, mas assombra-nos os fogos celestes, conquanto muitas vezes os obscureçam as nuvens e os eclipses.  Nem há nada na natureza que mais nos maravilhe do que as fornalhas ardentes do Etna, que vomitam pedras, e às vezes rochedos inteiros, do seu abismo laborante, e espalham rios inteiros de chama líquida e una. E disto podemos concluir que quando é útil e necessário ao homem está ao nível do seu alcance e facilmente se obtêm; mas tudo quanto excede o tamanho vulgar é sempre grandioso e sempre assombra.  
                  Com respeito, portanto, àqueles escritores sublimes cujo voo,  por alto que seja, nunca perde a sua utilidade e vantagem, temos outra consideração a acrescentar. As belezas de ordem inferior mostram que os seus autores são homens, mas o sublime aproxima-se de Deus. O que é correto e impecável apenas escapa à censura, mas o grande e sublime provocam a admiração. Que mais terei para dizer? Um sentimento elevado e sublime naqueles nobres autores compensa amplamente todos os seus defeitos. E o que é mais notável é que se os erros de Homero, Demosthenes, Platão, e outros dos mais célebres autores, se coligissem, nem de longe o seu número se aproximaria daquelas excelências infinitas e inimitáveis que são tão patentes neste heróis da antiguidade. E é por isto que todas as épocas e todas as gerações, imparcialmente tem concedido a estes grandes estes os louro que ainda estão verdes e imarcescíveis nas suas fontes. 
                  Certo escritor objeta neste ponto que um colosso mal esculpido não vale uma  estatueta impecável, por exemplo, o soldado de Policleto; mas mas a resposta a isto é evidente. Nas obras de arte olhamos às proporções exatas; nas da natureza  à grandeza e à magnificência. Ora, a linguagem é um dom que a natureza nos fez. Portanto, assim como a semelhança e a proporção em vista dos originais são precisas nas estátuas, assim na nobre faculdade de falar deve haver qualquer coisa de extraordinário, qualquer coisa de mais que humanamente grande... (O primeiro da seção sobre hipérbole perdeu-se). Esta hipérbole, por exemplo, é extremamente má: " Se não lavares os miolos nas solas dos pés e os pisares." Temos sempre de atender, portanto, a uma consideração: até que ponto pode o pensamento ser levado com propriedade. Porque ir além daquilo que é próprio, muitas vezes estraga a hipérbole; e o que é esticado de mais, relaxa-se e perde o tom; mais, produz por vezes um efeito contrário ao que se queria obter. Assim, Isócrates, infantilmente desejoso de não dizer nada sem exagero, deu em puerilidade vergonhosa.  O fim e objeto do seu Panegirico é provar que os atenienses foram maus uteis à Grécia em geral do que os espartanos; e eis como ele principia: "A  virtude e eficiência da eloquência é tão grande que pode tornar despiciendas as grandes coisas, vestir os assuntos triviais com pompa e ornamento, dar um traje novo ao que é velho e obsoleto e dar a coisas recentes um ar de antiguidade." Quem não perguntará imediatamente: É isso o que ides fazer com respeito aos atenienses e espartanos?  Porque este descabido encomio da eloquência é uma advertência insciente aos ouvintes para que não o escutem ou não lhe deem crédito. 
                  São melhores, em resumo, aqueles hipérboles (como já antes observei das imagens) que não tem a aparência nem o aspecto de hipérboles.  E esta é sempre a natureza daquelas que, no calor de uma paixão, aparecem no meio de um assunto de monta. Assim Thucidides aplicou com destreza um hipérbole aos seus compatriotas que morreram na Sicília. "Os siracusanos, diz ele, desceram sobre eles e trucidaram especialmente os que estavam no rio. A água imediatamente tinta de sangue. Mas estar o rio sujo de lama e sangue não evitou que eles o bebessem ávidamente, nem que mutos deles lutassem desesperadamente para chegarem à água." Uma circunstância tão rara e comovente dá à quelas expressões de beber lama e sangue, e lutar desesperadamente para beber, Um ar de probabilidade. 
                   As hipérboles são, literalmente, impossibilidades, e portanto só podem ser razoáveis ou produtoras de sublimidade onde as circunstâncias admitem o exagero, para que possam sempre parecer importantes e grandiosas.  
                   Heródoto usou uma hipérbole idêntica com referência à queles guerreiros que caíram na Thermópilas: "Neste ponto se defenderam com as armas que lhes restavam, e com unhas e dentes, até ficarem soterrados sob as setas dos bárbaros." 
                 Será impossível, perguntais, que homens se defendam a dente contra a fúria de adversários armados? Será possível que homens possam ser soterrados por setas? Mas, apesar de tudo isto, há no caso uma sombra de probabilidade. Porque não é a circunstância que parece ter sido adaptada à hipérbole, mas a hipérbole parece ser resultado  inevitável da circunstância. Porque a aplicação destas figuras apenas onde o calor da ação ou a impetuosidade da paixão as exige (ponto que nunca deixarei de insistir) bastante atenua a mitiga a audácia de expressões demasiado arrojadas. O mesmo se dá na comédia, onde circunstâncias de todo absurdas e incríveis ficam muito bem, porque estão de acordo com seu fim, que é provocar o riso. Sirva de exemplo este trecho: "Ele possui um bocado de terreno do tamanho de uma carta espartana." Porque o riso é uma paixão que nasce de qualquer  íntimo prazer. 
                   Mas as hipérboles servem geralmente para dois fins: aumentam e diminuem. Levam qualquer coisa além do seu tamanho natural em ambos os casos. E a força de expressão (a outra espécie de hipérbole) aumenta a baixeza de qualquer coisa, ou acentua a trivialidade das coisas triviais. 
BREVE BIOGRAFIA DE "LONGINO". 
               Dionísio Cássio Longino, o primeiro retórico, crítico e expositor de filosofia do seu tempo, e tido por alguns como o melhor crítico da antiguidade, nasceu, provavelmente na Síria, no ano 203 da nossa era. Foi discípulo de Orígenes em Alexandria, e estabeleceu-se em Atenas como professor de literatura e oratória, ganhando uma enorme fama, não só como uma viva enciclopédia, mas também pelas suas faculdades de intuição e de crítica. No fim da vida foi preceptor dos filhos de Zenóbia em Palmira, e o seu principal conselheiro político; derrotada ela por Aureliano, foi condenado à morte com traidor. 
Nicéas Romeo Zanchett 
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