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segunda-feira, 22 de abril de 2013

O JULGAMENTO DE SÓCRATES - Por Platão

O JULGAMENTO DE SÓCRATES
Por Platão
CAPÍTULO I
Trata-se de um documento onde Platão descreve o dialogo entre Sócrates e seus interrogadores Euthifron e Meleto. Foi traduzido do grego. Embora todo o julgamento tenha sido longo, é muito interessante conhecer o pensamento do grande mestre Sócrates ditas com suas próprias palavra e aqui transcritas por seu discípulo maior, Platão. -  Nicéas Romeo Zanchett

Sócrates, na véspera do seu julgamento por impiedade, quer mostrar que as noções correntes acerca da piedade ou impiedade, da santidade ou da ausência de santidade, não suportam uma crítica  rigorosa. 



      Euthifron - Que estás tu fazendo aqui no pórtico do archonte, Sócrates? Porque deixaste o teu lugar de costume no Liceu? Não tens, com certeza, como eu, uma ação a julgar perante ele. 
       Sócrates - Não; os atenienses, Euthifron, chamam-lhe uma acusação e não uma ação.
       Euthifron - O que? queres dizer que alguém te fez qualquer acusação? Porque não posso crer que sejas tu quem a faz a alguém. 
       Sócrates -  Por certo que não sou eu quem a faz. 
       Euthifron - Há então alguém que te acuse? 
       Sócrates -  Há. 
       Euthifron - Quem é?
       Sócrates - Mal o conheço, Euthifron; deve ser um rapaz desconhecido. O seu nome porém é Meleto, e o seu demos Pitthis; vê lá se te lembras de algum Meleto daquele demos - um homem de nariz aquilino, , cabelo comprido e pouca barba. 
       Euthifron -  Não o conheço, Sócrates. Mas, dize-me, por que razão te acusa ele? 
       Sócrates - Por que razão? Não é por pouco parece-me. Não é pouca coisa, para que um rapaz tão novo já tenha formado uma opinião sobre um assunto tão importante. Porque ele diz que sabe como se corrompe a juventude e quem a corrompe. Deve ser um sábio, que, vendo a minha ignorância, me vai acusar perante a cidade, como uma mãe, de corromper os seus amigos. Parece-me ser o único homem que principia por onde deve em matéria de reformas políticas; quero dizer, cujo primeiro cuidado é tornar a juventude quanto possível perfeita, assim como um bom lavrador cuidará primeiro das suas plantas mais novas, e, começa por correr conosco que, diz ele, corrompemos os jovens à medida que eles crescem; e depois de ter feito isso, daria naturalmente a sua atenção aos homens mais velhos, tornando-se assim um benemérito do público. É o que há a a esperar, visto que deste modo começa. 
      Euthifron - Oxalá assim seja, Sócrates, mas duvido muito. Parece que tentando fazer-te mal, o que ele está fazendo é atirando um golpe ao coração do Estado.  Mas, dize-me, de que modo afirma ele que tu corrompes a juventude? 
       Sócrates - De um modo que o princípio parece estranho  meu amigo. Diz que eu sou um fazedor de deuses; de mode que me acusa, segundo ele diz, de inventar novos deuses e não acreditar nos antigos. 
        Euthifron - Compreendo, Sócrates. É porque dizer que tens um signo divino. De modo que te acusa por introduzires coisas novas na religião; e vai ao tribunal sabendo que esses assuntos facilmente se podem  torcer perante a multidão, e portanto tencionando caluniar-te ali. Ora, de mim se riem eles como se estivesse doido quando falo de coisas divinas na assembléia e lhes vaticino o que vai acontecer; e contudo, nuca vaticínio meu saiu errado. Mas invejam os que são como nós. Convém que não lhes liguemos importância; devemos fazer-lhes frente sem temor. 
       Sócrates - Meu caro Euthifron, o escárnio deles não é coisa muito séria. Os atenienses,    parece-me, podem ter um homem por inteligente sem lhe ligar muita atenção, logo que não julguem que ele comunica a sua sabedoria aos outros. Mas logo que lhes parece que ele torna inteligentes a outros, zangam-se, que seja por inveja, como tu dizes, quer por qualquer outra razão. 
       Euthifron - Não tenho grande empenho em conhecera disposição deles para comigo neste assunto. 
       Sócrates - Não, talvez pensem que tu, como te mostras muito pouco, não tens grande empenho em comunicar o que sabes  aos outros; mas receio que de mim pensem o contrário; pois o meu amor à humanidade faz-me falar a todos que encontro, livremente e sem reservas,e sem remuneração; de fato, se eu pudesse, de boa vontade pagaria para me escutarem. Se pois, como acabo de dizer, eles se dispusessem apenas a rir de mim, como dizes que de ti riem, eu não acharia desagradável passar o dia desse modo, rindo e chalaceando no tribunal. Mas se vão encarar o caso a sério, então só profetas como tu podem dizer como isto acabará.
       Euthifron - Bem, Sócrates, o mais natural é que nada aconteça. É muito provável que sejas bem sucedido no teu julgamento, como creio que serei no meu. 
       Sócrates - E que ação é essa tua, Euthifron? És queixoso ou réu?
       Euthifron - Queixoso. 
       Sócrates - Contra quem? 
       Euthifron - Contra um homem que me julgam doido por levar ao tribunal. 
       Sócrates - O que? tem asas para voar? 
       Euthifron - Está muito longe de poder voar; é um homem muito velho. 
       Sócrates - Quem é ele? 
       Euthifron - Meu pai. 
        (Então, tendo Euthifron declarado que acusava o pai por ter morto um escravo, Sócrates pede-lhe para definir a piedade. Euthifron embrulha-se, e Sócrates faz-lhe notar que não lhe respondeu a pergunta. Não lhe pedira um exemplo particular de santidade. O que quer saber é o que faz santas todas as ações santas. Euthifron por fim define a santidade como sendo "aquilo que agrada aos deuses". Mas Sócrates, por uma série de perguntas em aparências inocentes, obriga Euthifron a admitir o absurdo da sua definição. Duas outras definições que Euthifron dá não tem melhor sorte, e ele passa dum estado de superioridade complacente a um de absoluta confusão e de amor próprio ofendido.) 
        Sócrates - Temos então que começar, e analisar o que seja santidade. Não tenciono desistir antes de saber. Não me julgues indigno; dá toda a atenção ao assunto e desta vez diz-me a verdade. Porque se alguém a sabe, és tu; e tu és um Proteu que não devo largar antes que mo tenhas dito. É impossível que pensasses em acusar o teu velho pai pelo assassinato de um trabalhador se não soubesses exatamente o que é a santidade e a ausência dela. Terias receado arriscar-te à cólera dos deuses, no caso de ser a tua má ação, e terias receado a opinião dos homens. Mas agora tenho por certo que sabes exatamente o que é santo e o que não é; por isso diz-mo, meu excelente Euthifron, e não me ocultes o que julgas que o é. 
         Euthifron- Outra vez será, Sócrates; agora tenho pressa e são horas de ir andando. 
         Sócrates - O que fazes, meu amigo? Vais-te embora e destróis todas as minhas esperanças de aprender de ti o que é santo e o que não é, e assim escapar a Meleto? Queria explicar-lhe que agora que Euthifron me fez saber das coisas divinas, nunca mais, na minha ignorância, falarei delas precipitadamente, nem nelas farei inovações; e depois iria prometer-lhe viver uma vida melhor no futuro. 
                                                       

CAPITULO II
DEFESA DE SÓCRATES PERANTE OS ATENIENSES
       Sócrates - Não sei qual a impressão, atenienses, que os meus acusadores vos causaram; quanto a mim, sei que quase me fizeram esquecer quem sou, tão plausíveis foram as suas razões; e contudo, quase que não disseram uma palavra que fosse verdade. Mas de todas as mentiras que disseram, a que mais me assombrou foi a de vos dizerem que sou um belo orador e que vos deveis acautelar para que não vos induza em erro. Achei que era grande a audácia da parte deles o falar assim sem se envergonharem; porque desde que eu abrisse a boca ficará reputada aquela mentira, e provaria que de modo algum posso ser considerado um belo orador; a não ser, é certo, que por belo orador entendam um homem que diz a verdade. Se é isso que querem dizer, concordo que sou muito melhor orador do que eles. Os meus acusadores, repito, pouco ou nada disseram de verdade; mas sim de mim ouvireis a verdade completa. Não escutareis decerto, atenienses, um discurso brilhante, engalanado, como o deles, com palavras e frases. Dir-vos-ei  o que tenho a dizer, sem preparação, e nas palavras que primeiro me ocorrerem, porque creio que a minha causa é justa; de modo que nenhum de vós deve esperar outra coisa. Na verdade, meus amigos, mal me ficaria, na minha idade, vir ante vós como um jovem com as suas mentiras especiosas. Mas há uma coisa, atenienses, que com instância e sinceridade vos peço. Não vos admireis nem me interrompais se na minha defesa eu falar da mesma maneira em que costumo falar no mercado, às mesas dos cambistas, onde muitos de vós me tem escutado,e noutros pontos. A verdade é esta. Tenho mais de setenta anos e esta é a primeira vez que compareço ante um tribunal; de modo que o vosso modo de falar me é inteiramente estranho. Se eu fora realmente estrangeiro perdoar-me-ias, por falar na língua e segundo o costume da minha pátria; e agora peço-vos que me concedais aquilo a que creio ter direito. Nãos vos importe o estilo do meu discurso- será bom ou mau - mas dai toda a vossa atenção à questão. O que eu digo é justo ou não é? Isso é que se faz um bom juiz, como falar a verdade faz um bom advogado.
         Tenho a defender-me, atenienses, primeiro, das intrigas falsas queixas dos meus antigos acusadores, e depois das queixas mais recentes dos meus acusadores atuais. Porque muitos homens há que muito tempo me tem tornado conhecido de vós, e que não tem dito uma palavra de verdade; e temo-os mais do que temo Anito e os seus companheiros, por formidáveis que sejam. Porque, meus amigos, os outros são ainda mais formidáveis; porquanto desde crianças que muitos de vós são influenciados por eles, que tem sido mais persistentes que os outros em tentar persuadir-vos que há um Sócrates, homem sábio, que raciocina acerca dos céus e analisa o que possa haver debaixo da terra, e que pode "fazer o pior parecer melhor". 
        Os homens que espalham esse boato, atenienses, são os acusadores que temo; porque os seus ouvintes julgam que os indivíduos que se ocupam dessas coisas nunca acreditam nos deuses.
E eles são muitos, e há muito tempo que me atacam; e a vós falaram disto quando ereis de idade em que sem hesitação dáveis crédito ao que diziam; porque ereis todos novos e muitos de vós crianças; e não havia quem lhes respondesse quando me atacavam. E o que nisto tudo é mais estranho é que nem mesmo sei bem os seus nomes; não vos posso dizer quem são, exceto no caso dos poetas cômicos. 
       Mas todos os outros que tem tentado malquistar-vos comigo, por motivos de inveja e despeito, e às vezes, talvez, por convicção, são os inimigos a quem é mais difícil combater.  Porque não posso chamar qualquer deles aqui ao tribunal para o interrogar; tenho, por assim dizer, que lutar com sombras em defesa própria, e fazer perguntas a que não há ninguém para responder. Peço-vos portanto, que acrediteis que, como digo, tenho sido atacado por duas classes de acusadores - primeiro, por Meleto e os seus amigos, e depois por esses mais antigos de que vos falei. E se me dais licença defender-me-ei primeiro das queixas dos meus velhos inimigos; porque foram as acusações deles que primeiro ouvistes, e foram muito mais persistentes do que são os meus acusadores atuais.  
       Tenho que me defender, ateniense, e de, no pouco tempo que me é dado, tentar remover o preconceito que contra mim de ha muito tendes. 
       Recomecemos pois e vejamos qual a acusação que deu origem ao preconceito que há contra mim, e que foi aquela de que se valeu Meleto ao formular a sua queixa. Qual é a calúnia que a meu respeito os meus inimigos tem espalhado? Suporei que me estão acusando formalmente e lendo a sua queixa. Ressoaria pouco mais ou menos assim: "Sócrates é um criminoso, que se ocupa de investigar o que se passa debaixo da terra, e no céu, e que faz o pior parecer melhor, e que ensina aos outros estas coisas." 
        É isto o que dizem; e na Comédia de Aristófanes vós próprios vistes um homem chamado Sócrates andando à roda dentro de um cesto pendurado, e dizendo que anda no ar, assim como muitos disparates acerca de assuntos de que não percebo nem pouco nem muito, mas nada. De modo algum quero depreciar essa ciência se há alguém que a possui. Espero que Meleto nunca me poderia acusar por causa disso. Mas a verdade é, atenienses, que não tenho nada que ver com esses assuntos, e vós sois quase todos testemunhas disso. Peço a todos vós que me tem ouvido falar, e são muitos, que informem os outros e lhes digam se alguma vez me ouviram conversar muito ou pouco, a respeito desses assuntos. Isso mostrar-vos-á que as ou coisas que vulgarmente de mim contam são falsas como esta.  
        (Acusam-no de ser ao mesmo tempo um sofista mau que exige dinheiro por ensinar, e um filosofo natural. Faz a distinção entre estas duas coisas e mostra que não é nenhuma delas. Não é popular porque se impôs o dever de examinar os homens, em vista de uma certa resposta dada pelo oráculo de Delfos, "que ele era o mais sábio dos homens".Descreve o como examinou os homens para avaliar da verdade do oráculo. Isto trouxe-lhe muitos ódios; os homens não gostam que lhes provem que são ignorantes quando se julgam sábios, de modo que lhe chamam um sofista e muitas outras coisas más, porque desfaz a sua pretensão à sabedoria.) 
       O que tenho dito deve bastar para me defender contra as acusações dos meus primeiros inimigos. Tentarei agora defender-me contra Meleto, aquele "bom patriota", como ele próprio se designa, e os meus acusadores mais recentes. Suponhamos que são uma nova classe de queixosos, e leiamos a sua queixa como no caso dos outros fizemos. Reza assim: diz ele que Sócrates é um criminoso que corrompe a juventude e que não acredita nos deuses da religião da cidade, mas em outras e novas divindades. A acusação é esta.
        Examinemos separadamente cada detalhe dela. Meleto diz que faço uma má ação corrompendo a juventude; mas afirmo, atenienses, que a má ação é a dele; porque está fazendo uma partida solene, arrastando homens aos tribunais, de animo leve, e afetando ter grande zelo e interesse em assuntos a que nunca deu um momento de atenção. E agora tentarei provar-vos que assim é. 
       Anda cá Meleto. Não é fato que julgas muito importante  que os jovens sejam quanto possível excelentes? 
       Meleto - É. 
       Sócrates - Diz então aos juízes quem é que os aperfeiçoa. Interessas-te tanto pelo assunto que não podes deixar  de o saber.  Acusas-me e trazes-me ao tribunal porque, como dizes, descobriste que sou quem corrompe a juventude. Ora, agora dize aos juízes quem a aperfeiçoa. Bem vez, Meleto, que nada tens a dizer; calas-te. Mas não achas isso uma coisa escandalosa? Não prova o teu silêncio concludentemente que tenho razão, e que nunca deste ao assunto um momento de atenção? Vamos dize-nos quem torna os mancebos melhores cidadãos?   
       Meleto - As leis. 
       Sócrates - Meu caro senhor, não perguntei isso. Qual o homem que aperfeiçoa a juventude, que aliás já tem conhecimento das leis? 
      Meleto - Os juízes aqui, Sócrates. 
      Sócrates - Que queres tu dizer, Meleto? Podem eles educar os jovens e aperfeiçoá-los? 
      Meleto - Por cento que podem. 
      Sócrates - Todos eles? ou só alguns?  
      Meleto - Todos eles. 
      Sócrates _ Por Juno, a notícia é boa! Há uma grande abundância de benfeitores! E os ouvintes aqui, aperfeiçoam-nos ou não? 
      Meleto - Aperfeiçoam. 
      Sócrates - E os senadores? 
      Meleto - Também. 
      Sócrates - Então Meleto, são os membros da assembléia quem corrompe a juventude? ou também a aperfeiçoam? 
      Meleto - Também a aperfeiçoam. 
      Sócrates - Então todos os atenienses, a não ser eu, fazem dos jovens bons cidadãos, ao que parece; e só eu os corrompo. É isso que queres dizer? 
      Meleto - Por certo; é isso que quero dizer. 
      Sócrates - Descobriste que sou um homem desgraçadíssimo. Ora, dize-me: julgas, por exemplo, que o mesmo acontece com cavalos? Haveria um só homem que lhes fizesse mal, enquanto todos os outros os aperfeiçoam? Não é certo, ao contrário, que é um só homem, ou muito poucos - a saber, os que entendem de cavalos - que os podem aperfeiçoar; ao passo que a maioria dos homens lhes faz mal, se os usa, e se lida com eles? Não acontece o me, Meleto, tanto com cavalo como com qualquer outro animal? Claro que acontece, que tu e Anito digam que sim ou que não. E os jovens serial de certo gente muito feliz se só um homem os corrompesse e todos os outros lhes fizessem bem.  A verdade é, Mileto, que acabas de provar completamente que nunca em tua vida pensaste na juventude. É claro, visto o que tu próprio acabas de dizer, que não te interessas absolutamente nada pelos assuntos porque me acusas.  
        (prova ser absurdo dizer-se que ele corrompe a juventude propositadamente, e se é sem o querer fazer que a corrompe, a lei não autoriza Meleto a acusá-lo por culpa involuntária. Com respeito à acusação de ensinar aos jovens a não crer nos deuses da cidade, submete Meleto a um interrogatório e fá-lo contradizer-se várias vezes).
         Mas na verdade, atenienses, não creio ser preciso dizer muito para provar que não cometi o crime de que Meleto me acusa. O que eu disse já basta para provar. Mas repito, é absolutamente certo, como já vos disse, que me tenho tornado pouco popular e feito muitos inimigos. E é isso que causaria a minha condenação, se me condenassem; não Meleto nem Anito, mas o preconceito e a má vontade da multidão. Ela tem destruído muito boa gente antes de mim, e depois de mim muita destruirá ainda. Não haja medo de que eu seja a última vitima. 
        Haverá talvez quem dissesse: "não te envergonhas, Sócrates, de te entregares a assuntos que agora provavelmente causarão a tua morte?" E eu com justiça lhes responderia: "meu amigo, se julgas que um homem de algum valor deve calcular antes de agir as probabilidades de vida e de morte, ou que deve pensar em qualquer coisa que não seja se está agindo bem ou mal, ou como agiria um homem bom ou um mau, erras completamente." Na tua opinião,os semi-deuses que morreram em Troia deviam ser homens de fraco valor, e entre eles o filho de Thetis, que não pensou no perigo quando a alternativa era a infâmia. Porque, quando sua mãe, uma deusa, se lhe dirigiu, quando ele ardia por matar Heitor, suponhamos desse modo: "Meu filho, se vingares, matando Heitor, a morte do teu companheiro Patroclo, morrerás também porque o destino espera-te logo depois da morte de Heitor", ouviu o que ela disse, mas desdenhou o perigo e a morte; mais receava viver como um covarde não vingando o seu amigo. "Deixai que eu castigue o malfeitor e morra logo depois" disse ele, "para que não permaneça aqui, ao pé dos navios, desdenhado dos homens e demais sobre a terra." Julgais acaso que ele pensou no perigo ou na morte? Porque isto, atenienses, creio ser verdade: onde quer que seja o posto dum homem, quer livremente o tenha escolhido, quer ali tenha sido colocado pelo seu comandante, é seu dever ficar ali e fazer face ao perigo sem pensar na morte, ou em qualquer outra coisa que não seja a infâmia. 
       Quando os generais que escolhestes para me comandar me colocaram, atenienses, no meu posto em Potidea (colina grega)  e em Anfípolis e em Délio, fiquei onde me colocaram, e corri o risco de morte como os outros homens; e seria agora bem estranho da minha parte se deserdasse do meu posto  por medo da morte ou de qualquer outra coisa, quando Deus me mandou, como estou convencido que fiz, levar a minha vida a procurar a ciência e a examinar-me a mim e aos outros. Seria na verdade estranho; e então com justiça me poderiam acusar de não acreditar nos deuses; porque teria desobedecido ao oráculo, temido a morte, e julgado ser sábio quando não o era. Porque temer a morte, meus amigos, é simplesmente julgarmo-nos sábios sem o ser, porque é julgar que sabemos o que não sabemos. Ao que sabemos, a morte pode ser o maior bem que nos possa acontecer: mas tememo-la como se soubéssemos perfeitamente que é maior dos males. E o que é isto senão aquela vergonhosa ignorância que consiste em julgar que sabemos o que não sabemos? Neste assunto também, meus amigos, talvez eu seja diferente da maioria da humanidade; e se eu chegasse a pretender que sou mais sábio do que os outros, seria por não julgar ter conhecimento exato do outro mundo, quando, com efeito, o não tenho. Mas sei perfeitamente que é mau e baixo praticar o mal e desobedecer a um superior, seja ele um homem ou um deus. E nuca praticarei o que julgar ser o mal, nem temerei o que, ao que sei, pode realmente ser um bem. De modo que, mesmo que me absolvêsseis, não escutando o argumento de Anito de que se eu fora absolvido nem devia então ter sido julgado, e que, sendo o caso como é, tendes obrigação de me condenar à morte porque, como ele diz, se eu escapar todos os vossos filhos ficarão de todo corruptos por fazer  o que lhes ensina Sócrates; se pois me dissésseis,  "Sócrates, desta vez não atenderemos ao Anito; deixar-te-emos  ir em liberdade; mas com a condição de que abandonarás as tuas investigações e a tua filosofia; se continuares a seguir esses estudos, morrerás"; se me oferessesseis, repito, absolver-me com esta condição, 
responder-vos-ia : "Atenienses, tenho-vos o maior afeto e consideração; mas antes obedecerei a Deus do que a vós; enquanto tiver vida e saúde não abandonarei a filosofia, nem deixarei de vos aconselhar e de declarar a verdade a todos vós que encontrar, dizendo, como é meu costume: Meu caro amigo,és um cidadão de Atenas, grande cidade e famosa pela sua ciência e inteligência; não te envergonhas de dar tanta atenção ao dinheiro, à reputação, e à honra? Por que não cuidas ou pensas na ciência, na verdade e na perfeição da tua alma? "
        E se ele contestar estas palavras que realmente se importa com estas coisas, não o abandonarei imediatamente afastando-me; pararei, e submete-lo-ei a um interrogatório; e se julgar que não tem virtude, com quanto diga que tem, repreende-lo-ei por dar o menor valor às coisas mais importantes e o maior às coisas que são de menos monta. Isto farei a todos a quem encontrar, novos ou velhos, cidadãos ou estranhos; mas especialmente aos cidadãos, porque há entre mim e eles mais parecença. 
         Porque, bom é que saibas, Deus mandou-me fazer isto. Porque gasto a minha vida andando dum lado para o outro, persuadindo-vos a todos a dar o vosso primeiro e principal cuidado à perfeição das vossas almas, e a não pensar, antes de o terdes feito, nos vossos corpos ou no vosso dinheiro; e dizendo-vos que não é a virtude que vem da riqueza, mas sim a riqueza, e tudo o mais quanto de bom os homens tem, quer pública, quer particularmente, que vem da virtude. Se eu portanto corrompo a juventude ensinando-lhe isto, o mal que faço é grande; mas se há alguém que diga que ensino qualquer outra coisa, falseia a verdade. E portanto, atenienses, atendei a Anito ou não o atendais; absolvei-me ou não me absolvais; tende porém a certeza que não alterarei o meu modo de vida; não,nem que por isso tenha de morrer muitas vezes. 
        (Se os atenienses o condenarem à morte, farão mais mal a si mesmos do que a ele. A cidade é como um grande e belo cavalo tornado indolente pelo seu tamanho e precisando ser espicaçado. Ele foi a mosca mandada por Deus para o atacar. Explica porque não tem tomado parte na vida pública. Se o tivesse feito teria perecido sem vantagem para a cidade, porque ninguém o podia obrigar a praticar o mal por medo da morte. A sua conduta em duas ocasiões prova isto). 
         Bem, meus amigos, é isto o que, com talvez outras coisas parecidas, eu tenho a alegar em minha defesa. Haverá entre vós alguém que se recorde de como, mesmo num julgamento menos importante do que este, pediu e implorou aos juízes com muitas lágrimas para o absolverem, e como trouxe os filhos e muitos amigos e parentes para o tribunal, para sensibilizar; e agora vede que nada  disto faço, conquanto esteja o que julgam ser o maior dos perigos. Talvez isso lhe dê uma opinião desfavorável a mau respeito; pode ser que se encolerize e dê nesse estado o seu voto.  Se isso acontecesse a qualquer de vós - não suponho que aconteça, mas se assim fosse - parece-me que  responderia razoavelmente, dizendo: Meu amigo, tenho parentes também porque, como diz Homero, "não nasci de paus ou de pedras, mas de uma mulher"; de modo que, atenienses, tenho parentes, e tenho três filhos, um deles já rapaz, e os outros dois ainda crianças. E contudo não trarei nenhum deles perante vós, para que me absolveis. 
         E porque não faço nada disto? Não é por arrogância, atenienses, nem porque vos tenha em pouca conta; se saberei ou não encarar a morte com coragem é outro assunto; mas para meu crédito, para o vosso crédito e para o crédito da nossa cidade, não acho bem, na minha idade e com o meu nome, fazer qualquer coisa desse gênero. Com razão ou sem ela está muita gente persuadida de que de qualquer maneira difere Sócrates do resto da humanidade. E será uma coisa vergonhosa se aqueles de vós de quem se pensa que se distinguem pela sabedoria ou pela coragem ou por qualquer outra virtude, procederem desse modo. Muitas vezes tenho visto homens com boa reputação proceder de modo estranho no seu julgamento, como se julgassem uma sina terrível o serem mortos, e como se esperassem viver eternamente se vós não os condenásseis à morte. Estes homens parecem-me redundar em descrédito da cidade; pois qualquer estrangeiro poderia supor que os atenienses melhores e mais eminentes, que são escolhidos pelos seus concidadãos para exercerem cargos públicos e para outras honras, não passam de mulheres. Aqueles de vós atenienses, que tem alguma  reputação, não devem fazer estas coisas; e não deveis deixar que as façamos; deveis mostrar que sereis muito mais impiedosos para aqueles que tornam a cidade ridícula por estas cenas desgraçadas, do que para os que se conservam sossegados.
          Mas à parte  a questão dos crédito, meus amigos, não me parece bem que se peça ao juiz para nos absolver, e desse modo se escape à condenação.  É nosso dever convencer-lhe o espírito por meio de raciocínios. Ele não está ali para oferecer justiça aos amigos, mas para pronunciar o julgamento; e jurou não favorecer alguém a quem deseje favorecer, mas decidir tudo de acordo com a lei. E portanto, não devemos ensiná-los a perjurar; e não deveis permitir que lho ensinem, porque então nem eles nem nós agiríamos bem. Portanto, atenienses, não espereis de mim que faça estas coisas, porque creio que não são nem boas, nem justas, nem santas; e muito especialmente não espereis que as faça hoje, quando Meleto me acusa de blasfêmia. Porque se eu vencesse e conseguisse pelos meus pedidos que quebrásseis o vosso juramento, claramente vos estaria ensinando que não há deuses; estaria simplesmente pela minha defesa acusando-me de não acreditar neles. Mas, atenienses, isso está longe de ser a verdade. Creio nos deuses, e como não crê nenhum nenhum dos meus acusadores; e a vós e a Deus entrego a minha causa para que seja decidida como melhor for para vós e para mim. 
           ( Dão o crime como provado por 281 votos contra 220). 
          Por muitas razões me não apoquenta a decisão que acabaste de dar, atenienses. Esperava que decidísseis contra mim; e o que mais me admira não é isso, mas a votação. Deveras não esperava que a maioria contra mim fosse tão reduzida. Mas agora vejo que se apenas 30 votos tivessem passado de um lado para o outro, eu teria escapado.
          (Meleto propõe a pena de morte. A lei permite a um criminoso propor uma alternativa. Como é um bem-feitor público, Sócrates pensa que devia ser mantido pelo Estado no Pritaneu como um vencedor olímpico. Falando  a sério, porque proporia ele uma pena? Tem a certeza de que não fez mal nenhum. Não sabe se a morte é um bem ou um mal. Porque proporia então uma coisa que sabe que é um mal? É certo que o pagamento de uma multa não seria um mal, mas o que também e certo é que não tem com que pagar; talvez possa reunir uma mina (alguns trocados) é o que propõe. Ou, se os seus amigos  quiserem, oferece trinta minas, ficando os seus amigos por fiadores). 
          (É condenado á morte) 
          Não ganhastes muito tempo, atenienses, e como prêmio disto tereis um mau nome de todos quantos queiram dizer mal da cidade, porque atirar-vos-ão à cara que condenastes Sócrates, um sábio, à morte. Porque com certeza me chamarão sábio, quer eu o seja ou não, quando vos quiserem acusar. Se tivésseis esperado um pouco, a natureza ter-vos-ia feito a vontade; porque vedes que sou um velho, bastante velho mesmo e perto da morte. Não estou falando a todos vós, mas só àqueles que votaram pela minha morte. E agora é a eles que me continuo a dirigir. Talvez, meus amigos, jugueis que fui derrotado por falha de argumentos com que vos poderia persuadir a absolver-me, dado que julgasse próprio fazer ou dizer qualquer coisa para escapar ao castigo.
         Não é assim. Fui derrotado porque falho, não de argumentos, mas de audácia e arrojo; porque não quis defender-me ante vós como quereis ouvir-me defender-me, nem implorar-vos chorando ou gemendo, ou dizer ou fazer muitas outras coisas que tenho por indignas de mim, mas a que estais acostumados por outros. Mas eu, quando me defendia, poderei em que não devia fazer nada de pouco viril por causa do perigo que corria, e não mudei de atitude desde então. Prefiro ter-me defendido como defendi e morrer, do que ter-me defendido como quereis e viver. Tanto num tribunal como numa guerra há coisas que nem a mim nem a qualquer outro é lícito fazer para escapar à morte. Na batalha um homem muitas vezes vê que pode pelo menos escapar à morte, abandonando as armas e ajoelhando aos pés do inimigo para pedir que lhe poupe a vida. E há muitas outras maneiras de escapar à morte em todos os perigos, para quem não tem escrúpulos que o impeçam de dizer ou fazer qualquer coisa.   
        Mas, meus amigos, creio ser coisa muito mais difícil  fugir à maldade do que à morte, porque a maldade é mais rápida que a morte. Ora, eu que sou velho e tardo, fui apanhado pela perseguidora mais lenta, e os meus acusadores que são inteligentes e velozes, foram apanhados pela perseguidora mais rápida, que é a maldade. E agora irei daqui condenado á morte; e eles irão daqui condenados pela verdade a receber a pena da maldade e do mal.  E estou por este prêmio assim como eles. Talvez fosse bom que isto assim se desse; e creio ter-se dado com justiça. 
         E agora quero vaticinar perante vós, atenienses, que me condenastes.  Porque vou morrer,  e essa é a hora em que os homens mais tem poder profético. E vaticino a vós, que me condenastes á morte, que um castigo muito mais severo do que o que me infligistes inevitavelmente cairá sobre vós logo que eu estiver morto. Fizestes isto pensando que não teríeis que dar conta das vossas vidas. Mas digo eu que o resultado será muito diferente. Haverá mais homens que vos pedirão contas, homens que retive e que vós não vistes. E eles ser-vos-ão mais duros do que eu tenho sido, porque serão mais novos, e encolerizar-vos-ei mais com eles. Porque se julgais evitar que os homens vos repreendam pela vossa má vida, condenando-os à morte, enganai-vos muito. Esse modo de fugir é quase impossível e não é bom. É muito melhor e muito mais fácil não fazer calar as censuras, mas tornar-vos o mais perfeitos possível.  Esta é a profecia que faço ao despedir-me de vós que me condenastes. 
           (Tendo repreendido severamente os que o condenaram, diz aos que o absolveram que estejam tranquilos. Nada de mau pode acontecer a um homem bom, quer na vida quer na morte. A morte ou é um sono eterno e sem sonhos onde nada se sente; ou uma viagem a um outro mundo melhor, onde estão os grandes homens da antiguidade. Em qualquer dos casos não é um mal, mas um bem). 
          E vós também, juízes, deveis fazer frente à morte corajosamente e ter isto por certo, que nada de mau pode acontecer a um homem bom, quer em vida quer depois da morte. A sua sorte não é descurada pelos deuses; e o que hoje me aconteceu não creio que tenha acontecido por acaso. Estou convencido de que era melhor para mim morrer agora e ficar liberto de todo o cuidado; e que foi essa a razão porque o signo nunca me mandou retroceder. De modo que mal estou zangado com os meus acusadores ou com os que me condenaram á morte. Não foi porém com este pensamento que eles me acusaram e condenaram, mas querendo fazer-me mal. De modo que por isso posso censurá-los. 
        Mas tenho um pedido a fazer-lhes. Quando meus filhos crescerem, castigai-os, meus amigos, importunai-os do mesmo modo do que eu os importunei, se virdes que eles preferem a riqueza ou outra coisa qualquer à virtude; e se eles julgarem que são alguma coisa, quando não são nada, reprendei-os como vos tenho repreendido, por não cuidarem do que deviam e por se julgarem grandes homens quando de fato não tem valor nenhum. E se fizerdes isto, eu e meus filhos teremos recebido de vós o que merecemos. 
          Mas a hora chegou, e temos de nos ir; eu para a morte, e vós para a vida. Se a vida ou a morte é melhor, sabe-o Deus, e só Deus. 

OBSERVAÇÕES FINAIS: 
     Em vida, Sócrates nos legou sua enorme sabedoria; na morte nos deu o exemplo de coragem e resignação, mas sempre salientando que a sabedoria, a virtude e a dignidade sobrevivem á ganância, ao orgulho e aos preconceitos; e só elas - virtude e sabedoria - são capazes de purificar e elevar a alma que é a razão pela qual estamos aqui.
      Chamo a atenção dos leitores para os comentários feitos por Platão nos intervalos do julgamento. Ele consegui com este escrito nos colocar dentro do tribunal, assistindo o primeiro grande crime da democracia.
       Na véspera de beber a mortífera taça de cicuta, Sócrates foi informado secretamente por seus amigos de que estava livre, porque eles haviam subornado o guarda da prisão, que abriria a porta do cárcere durante a noite. Todavia ele se recusou a fugir, alegando que, se assim fizesse, nem seus próprios amigos e discípulos acreditariam na sinceridade das suas convicções; por outro lado, não considerava a morte como o fim da vida, mas como simples transição de um para outro ambiente de existência. Quando seu mais devoto amigo, Kriton, insistiu com súplicas e lágrimas  que escapasse á morte iminente, o velho filósofo fez ver ao amigo que ninguém podia matá-lo, porque ele era imortal, porquanto o verdadeiro Sócrates era a alma e não o corpo dele, mero invólucro temporário daquela. Permaneceu sentado no cárcere aberto, e na manhã seguinte sorveu tranquilamente o veneno mortífero, que pôs fim à vida do primeiro mártir da filosofia ocidental. 
        Na filosofia ocidental, Sócrates pode ser considerado o pioneiro da ideia da imortalidade do homem; e pensando assim, podemos considerá-lo como o primeiro cristão, antes de Cristo ter nascido. 
Nicéas Romeo Zanchett 

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