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Por Emílio Souvestre - (Um filósofo nas Trapeiras).
12 de Julho, 7 horas da noite. - Quando entrava em casa esta noite vi de pé no limiar duma porta um velho que pela atitude e as feições me fez lembrar meu pai; o mesmo sorriso irônico, o mesmo olhar quente e profundo, a mesma nobreza no porte da cabeça e o mesmo abandono de atitude.
Isto levou o meu pensamento para o passado. Pus-me a rever os primeiros anos da minha vida e a lembrar-me das conversas desse guia que Deus me deu na sua clemência, e que na sua severidade demasiado cedo me retirou.
Quando meu pai me falava não era só para por em contato os nossos dois espíritos por uma troca de idéias; as palavras continham sempre um ensinamento.
Não que ele o procurasse fazer sentir! temia tudo que tivesse a aparência de lição. Costumava dizer que a virtude adquiria amigos apaixonados, mas nunca tinha discípulos; por isso não s pensava em ensinar o bem, contentando-se em semear os germes, certo de que a experiência os faria desabrochar.
Quanto grão assim caído num canto do coração por muito tempo esquecido, deita de repente a sua haste e dá espiga! Riquezas postas em reserva numa época de ignorância, das quais não conhecemos o valor senão no dia em que precisamos delas.
Entre os contos com que animava os nossos passeios ou os nossos serões, há um que me ocorre neste instante à mente, sem dúvida porque chegou a hora de lhe deduzir a lição implícita.
Colocado desde os doze anos em casa dum desse negociantes colecionadores que se dão a si mesmos o nome de naturalistas porque expõem a natureza de vidros para vender o retalho, meu pai levara sempre uma vida pobre e laboriosa. Sempre em pé antes do amanhecer, ao mesmo tempo marçano, caixeiro, operário, devia ele só fazer todos os trabalhos dum comércio de que o seu patrão era o único a recolher os lucros. Para se dizer a verdade este tinha uma habilidade especial para fazer valer o trabalho dos outros. Incapaz de produzir qualquer coisa, ninguém sabia vender melhor do que ele; as suas palavras eram uma rede, na qual o freguês se achava preso antes de se dar por isso. Quanto ao mais, só era amigo de si mesmo, considerava o produtor como seu inimigo, o comprador como sua conquista e explorava a ambos com essa inflexível persistência que a avareza ensina.
Escravo toda a semana, meu pai não era senhor de si senão aos domingos; o senhor naturalista, que ia passar o dia na casa duma prima velha, dava-lhe então liberdade com a condição que jantaria fora e à sua custa. Meu pai levava secretamente uma côdea de pão que escondia na sua caixa de herborização, e saindo de Paris de madrugada ia internar-se no vale de Montemorensy, nos bosques de Meudon ou nas margens do Marne. Embriagado pelo ar livre e pelo cheiro penetrante da seiva em ação e pelo perfume da madresilva, caminhava até que a fome e o cansaço se fizessem sentir; então assentava-se na borda dum matagal ou nas margens dum rio; o agrião, os morangos silvestres, as amoras das silvas ofereciam-lhe sucessivamente um festim rústico. Colhia algumas plantas, lia umas páginas de Florian, que principiava a estar em voga, de Gessner, que acabava de ser traduzido ou de João Jacques de quem possuía três volumes desirmanados. O dia passava-se nestas alternativas de atividade e de repouso, de buscas e de devaneios, até que o sol declinando lhe anunciava que era tempo de retomar a estrada da grande cidade, onde chegava com os pés magoados e empoeirados, mas com o coração para toda a semana.
Um dia que se dirigia a Viroflay, encontrou junto ao limite do bosque um desconhecido ocupado a apartar as plantas que acabava de herborizar. Era um homem já velho, de rosto honesto, mas com os olhos um pouco encovados, tendo no olhar qualquer coisa de melancólico e tímido. Vestia um casaco de pano castanho, colete cinzento, calças pretas, meias de lã, e trazia debaixo do braço uma bengala de castão de marfim. A sua aparência era a dum burguês retirado dos negócios e vivendo dos seus rendimentos, um pouco acima da mediocridade dourada de que fala Horácio.
Meu pai, que respeitava muito a velhice, cumprimentou-o delicadamente ao passar; mas neste gesto deixou cair uma planta que tinha na mão.
O desconhecido ao baixar-se para a apanhar reconheceu-a.
- É uma Dentaria heptaphillus, disse; ainda não tinha visto nenhuma nestes bosques; o senhor achou-a perto daqui?
heptaphyllus
Meu pai respondeu que se encontravam em abundância no alto da colina para os lados de Sévres assim como o grande Laserpitium.
- Também! repetiu o velho arrebatado. Ah! vou procurá-las; apanhei algumas outrora para os lados de Robaila...
Meu pai propôs-lhe levá-lo lá. O desconhecido aceitou com reconhecimento e apressou-se a juntar as plantas que tinha apanhado; mas, de repente pereceu tomado de escrúpulos; fez observar ao seu interlocutor que o caminho que seguia era a meia encosta e que se dirigia ao castelo das Princesas Reais em Bellevue; que, atravessando o cimo, por conseguinte do seu caminho, e que não era justo incomodar-se assim por um desconhecido.
Meu pai insistiu com a afabilidade que lhe era habitual; mas quanto mais solícito se mostrava, mais obstinado na recusa se tornava o velho; pareceu mesmo a meu pai que a sua boa vontade inspirava desconfiança.
Decidiu-se então a só mostrar o caminho ao desconhecido a quem cumprimentou; em breve o perdeu de vista.
Passaram-se muitas horas e ele já não pensava no seu encontro com o velho. Tinha chegado ao castanhal de Chaville, onde relia o último volume de Emílio estendido na relva duma clareira. Estava tão completamente absorto no encanto da leitura que cessara de ver e de ouvir o que o cercava. Com as faces afogueadas e os olhos úmidos relia em voz baixa uma passagem que o tinha particularmente impressionado.
Uma exclamação dita mesmo a seu lado arrancou-o do seu êxtase; levantou a cabeça e viu o burguês que já encontrara na encruzilhada de Viroflay.
Estava cercado de plantas que tinha apanhado, o que parecia tê-lo posto de bom humor.
- Mil agradecimentos, senhor, disse a meu pai, encontrei tudo que me indicou e devo-lhe um passeio encantador.
Meu pai levantou-se,respeitosamente, dando uma resposta afável ao velho. O desconhecido parecia completamente domesticado, e foi ele próprio que perguntou se oseu jovem confrade não tensionava tomar a estrada de Paris. Meu pai respondeu afirmativamente e abriu a sua caixa de lata para lá guardar o livro.
O desconhecido perguntou-lhe, sorrindo, se podia sem indiscrição, saber o título do livro. Meu pai respondeu-lhe que era Emílio de Rousseau.
O desconhecido tornou-se logo muito sério.
Caminharam por algum tempo ao lado um do outro, meu pai expressando com o calor de uma emoção vibrante ainda tudo que aquela leitura lhe tinha feito sentir, e o seu companheiro sempre frio e silencioso. O primeiro gabava a glória do grande escritor genovês, que o seu gênio tinha feito cidadão do universo; exaltava-se falando desse privilégio dos sublimes pensadores que dominam apesar do espaço e do tempo, e recrutam entre todas as nações, um povo de súditos voluntários; mas o desconhecido interrompeu-o de repente.
- E tem certeza, disse com doçura, de que Jean Jacques não trocaria essa celebridade que o senhor parece invejar-lhe, pela sorte de um daqueles lenhadores que vivem naquelas cabanas que vemos fumegar além? Para que lhe serviu a fama senão para lhe acarretar perseguições? Os amigos desconhecidos que os seus livros lhe granjearam contentam-se em abençoá-lo nos seus corações, enquanto os inimigos declarados que esses livros lhe fizeram o perseguem com as suas violências e as suas calúnias! O bom êxito lisonjeia o seu orgulho! mas quantas vezes não foi ferido pela sátira! Creia-o, o orgulho humano parece-se sempre com a sibarita que a dobra duma folha de rosa impede de dormir. A atividade de um espírito vigoroso de que o mundo aproveita, volta-se sempre contra aquele que a possui. Fá-lo exigir mais da vida; o ideal que procura descontenta-o constantemente da realidade; parece-se com um homem que tivesse uma vista demasiado aguda e que visse sempre nos mais belos rostos os sinais da rugas. Não lho falo das tentações mais fortes, das quedas mais profundas. O senhor disse que o gênio era uma realeza! Mas qual é o homem de bem que não tem medo de ser rei? que não sente que o muito poder é, com a nossa fraqueza e os nossos ímpetos, preparar-se para muito errar? Creia-me, senhor, não admire nem inveje o desgraçado que escreveu esse livro; mas sim lastime-o, se tem um coração sensível!
Meu pai, admirado da vivacidade com que o desconhecido pronunciara as últimas palavras, não sabia que responder. Nesse momento chegaram à estrada que ligava o castelo de Meudon ao de Versalhes. Passou uma carruagem; as senhora que iam nela, vendo o velho, deram um grito de surpresa, e debruçando-se repetiam: - É João Jacques! É Rousseau!
Depois a carruagem desapareceu. Meu pai estava imóvel, olhos esgazeados, os braços estendidos, estupefato e desorientado. Rousseau, que estremecera ouvindo pronunciar o seu nome, voltou-se para ele.
- Vê, disse-lhe com a amargura misantrópica que os seus últimos desgostos lhe tinham dado, João Jacques nem mesmo se pode esconder; objeto de curiosidade para uns, de malevolência para outros, e para todos uma coisa pública que se aponta o dedo. E se fosse só sofrer a indiscrição dos ociosos! Mas logo que um homem tem a infelicidade de se criar um nome, pertence a todos; todos investigam a sua vida, contam as suas mínimas ações, insultam os seus sentimentos; torna-se semelhante a esses muros que todos os transeuntes podem manchar com uma inscrição injuriosa. Dirá talvez que eu mesmo animei essa curiosidade publicando as minhas Memórias. mas foi o mundo que me obrigou; espreitava-se a minha casa pelas fendas e caluniavam-me; abri portas e janelas para que me conhecessem, pelo menos, como realmente sou. Adeus, senhor, lembre-se sempre que viu Rousseau para saber o que vale a celebridade.
Nove horas. - Ah! compreendo hoje a narração de meu pai! Contém a resposta a uma das perguntas que me dirijo ha uma seman. Sim, sinto agora que a glória e o poder são dons que se pagam muito caros, e que, se fazem ruído em volta da alma, são a maior parte das vezes, como diz Madame de Stael, um luto brilhante da felicidade.
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BREVE BIOGRAFIA
Emílio Souvestre, foi um literato francês que nasceu em Morlaix a 15 de Abril de 1806 e morreu em Paris a 5 de Julho de 1854. Formou-se em jornalismo e ganhou fama pelos seus esboços da Bretanha: Les Derniers Bretons; Foyer Breton; Um Philosofhe Sous les Toits, que foi coroado pela academia em 1851. Escreveu também em 1854 uma obra em dois volumes: Causeries Historique et Littetaires e muitas peças de teatro.
Nicéas Romeo Zanchett
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Um verdadeiro amigo dá quando tem de sobra, mas a mulher dá mesmo quando pode lhe fazer falta, porque elas tem o gênio da caridade.
Mesmo sendo generoso, um homem só dá o seu dinheiro, entretanto a mulher tem a capacidade de dar o seu dinheiro e seu coração. A caridade feminina renova todos os dias o milagre da bondade, da fraternidade e do amor ao próximo. É por essas e outras mil razões que amo profundamente as mulheres.
Nicéas Romeo Zanchett